Por Adhemar S. Mineiro
O processo de industrialização brasileiro vem dando passos atrás desde meados dos anos 80. Depois de um processo rápido de industrialização e da montagem de uma indústria razoavelmente complexa desde os anos 1930, o processo começa a estancar nesse período. A partir dos anos 90, começa a se falar em um processo de desindustrialização, que foi mais discutido e ficou evidente no novo século. Não é o objetivo deste artigo avançar sobre a questão, mas vale a pena ter em mente alguns referenciais históricos do processo.
O desmonte na área industrial desarticulou a integração entre os setores que poderia existir dentro do país. Assim, mesmo quando o país crescia (e começou a crescer de forma mais acelerada a partir de 2004, no segundo ano do governo Lula), parte desse crescimento era transferido através de demanda ao exterior, e de aumento das importações. Políticas de crescimento voltadas para as camadas de renda mais baixa, com aumento do salário mínimo, crédito popular e políticas de complementação de renda adotadas nesse período e que viabilizaram um crescimento mais acelerado, transferiram boa parte do potencial de crescimento para o exterior, pela desconexão das cadeias de produção industrial no país.
O mesmo pode ser falado do crescimento dos setores exportadores de primários, também dependentes de importações para o seu bom funcionamento (na área agrícola e pecuária, por exemplo, a produção depende da importação de sementes, defensivos, fertilizantes e muitas máquinas). O crescimento efetivo, desta forma, é sempre menor do que o que poderia ser alavancado no caso de uma maior complexidade da cadeia produtiva interna, com a produção no mercado doméstico.
Em alguns momentos, se tentou implementar a internalização de setores, como no caso da produção de petróleo, no qual se buscou dinamizar, por exemplo, a indústria naval, com a construção de navios e plataformas de petróleo, sempre com forte oposição dos fornecedores estrangeiros. No período mais recente, as negociações de capítulos de compras de governo em acordos que estão sendo negociados (como o acordo entre a União Europeia e o Mercosul) e a própria adesão ao grupo de negociação de compras públicas na Organização Mundial do Comércio (OMC) devem limitar ainda mais essas possibilidades.
Progresso técnico
O setor industrial é gerador e difusor do progresso técnico e do desenvolvimento. A indústria, por um lado, é o setor onde existe a maior possibilidade de geração de progresso técnico, pela natureza da competição e a diversificação da produção. Por esse mesmo último aspecto, aí também se difunde mais rápido o progresso técnico. Pela diversificação (em analogia à concentração em poucos produtos da agricultura), ou seja, pela ampliação da divisão do trabalho, também são criadas mais possibilidades de geração de progresso técnico. Além disso, a pressão dos trabalhadores organizados (em comparação com o excedente de mão de obra no campo) faz com que também seja acelerada da introdução de progresso técnico. Ao reduzir o peso da indústria, por tabela também se perde o dinamismo da geração e difusão de progresso técnico no desenvolvimento.
Assim, é importante, neste momento em que se está pensando novas estratégias de desenvolvimento, repensar o papel da indústria neste processo. Cada vez mais há uma relação entre soberania e a capacidade de desenvolvimento autônomo.
Lições da pandemia
No período recente, a própria pandemia da covid-19 mostrou isso. Os países que desmontaram suas áreas de desenvolvimento tecnológico e seus parques industriais de produção na área de saúde e conexos, desde produtos mais sofisticados, como medicamentos e vacinas, até acessórios, como máscaras e também produtos hospitalares, como leitos e ventiladores pulmonares, tiveram enorme dificuldade de lidar com a pandemia.
A necessidade de importação de produtos enfrentava desde preços altos, dificuldades logísticas de acesso aos bens, até disputas internacionais nos locais por onde passavam os produtos, em um momento em que todos os países enfrentavam o problema ao mesmo tempo. Só isso já seria suficiente para levantar um ponto importante: produtos que até aqui foram tratados como commodities nesse mundo da liberalização comercial, em realidade devem ser considerados bens estratégicos para os países, e ter, portanto, a sua produção doméstica assegurada. As interrupções de produção causadas pela pandemia, e dos próprios fluxos de comércio por conta de diferentes interrupções ocorridas (inclusive a chamada “crise dos containers”, com a escassez de containers travando o comércio internacional e jogando areia no funcionamento de cadeias globais de produção pela falta de alguns insumos) também passaram a causar preocupação em cadeias de produção longas.
A geopolítica dos anos que se seguiram à pandemia, com a guerra na Ucrânia e uma série de interrupções no fornecimento de produtos (alimentos, petróleo e gás, e outros) a nível mundial acabou recolocando o problema das estratégias de integração produtiva e a importância em distintos graus da autossuficiência, fazendo emergir um debate sobre “desglobalização” – temas que pareceriam exóticos há cerca de cinco anos.
Integração regional
No caso do Brasil, o dinamismo industrial pode vir do processo de integração regional. Já tivemos no passado uma experiência de integração importante da cadeia automotiva com a Argentina e o México, mas cuja dinâmica foi estabelecida pelas transnacionais que controlam as montadoras neste setor nos dois países.
Mas, aqui, como potencial recente, estaríamos falando de uma política muito maior, primeiro por potencialmente envolver mais países (e não só México e Argentina), além de muitos setores. Isso implicaria planejar algum tipo de política industrial comum na região, o que não é trivial. Por outro lado, implicaria trabalhar com tamanhos de mercado bastante superiores aos existentes nos níveis nacionais, o que poderia potencializar a introdução de plantas produtivas com escalas de produção maiores e, portanto, com ganhos de produtividade em vários setores.
Vocação para liderar a retomada
O Brasil, pelo tamanho de sua economia, tem condições de liderar esse processo, desde que não busque que todos os ganhos sejam para empresas brasileiras ou instaladas no Brasil. Coordenar cadeias de produção a nível regional implica assumir que partes do processo e da produção de produtos finais, além de setores de pesquisa e desenvolvimento, possam ficar em outros países que fazem parte da cadeia, ou o processo não será atrativo para alguns países. Operar reproduzindo no nível regional as relações de divisão internacional da produção que a região hoje tem com a Europa, EUA e China, por exemplo, pode inviabilizar esse grande projeto de integração.
Se bem-sucedido, um processo como esse, combinando integração regional com inclusão social, tendo também a questão ambiental como central, poderia contribuir não só para oferecer perspectiva para o Brasil e para vários governos que podem atuar conjuntamente na região, como poderia ter efeitos políticos e geopolíticos. Políticos, porque os governos que buscam a construção de alternativas na região, e que já tiveram uma oportunidade importante na primeira década deste século, precisam escapar da armadilha do modelo primário-exportador, extrativista, que acaba predominando, tendo como farol os EUA, e/ou a União Europeia e/ou a China. Geopolíticos, porque a América do Sul (e dentro dela o Brasil) ganha força na negociação nesse mundo que organiza sua configuração por potências e blocos. Desta forma, faríamos em conjunto a “transição verde” e uma política inclusiva.
Adhemar S. Mineiro é economista, membro da coordenação da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed-RJ), doutorando do PPGCTIA-UFRRJ, assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e colaborador voluntário do Conjuscs.
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