“Os números não revelam a magnitude da vitória de Lula”, afirma a cientista política Mayra Goulart, que também destaca que Bolsonaro elevou o abuso da máquina pública a um novo patamar
São Paulo – A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições presidenciais desse domingo (30) tem um significado que vai muito além dos dois milhões de votos que o candidato teve a mais do que o adversário Jair Bolsonaro (PL). “Lula derrotou o uso bolsonarista da máquina pública”, afirma a professora de ciência política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mayra Goulart.
No segundo turno, Lula obteve 50,90% dos votos válidos, contra 49,10% de Bolsonaro. Com 100% das urnas apuradas, o candidato do PT recebeu 60,3 milhões de votos (60.345.999). O atual presidente, 58,2 milhões (58.206.354). De nove eleições presidenciais no pós-ditadura, Lula venceu três, um feito inédito.
“Os números não revelam a magnitude da vitória de Lula. Essa eleição tem alguns condicionantes que fazem com que essa margem de dois milhões de votos tenha muito mais importância do que parece. A gente tem que levar em conta que nunca um candidato à reeleição, que conte com a máquina pública, foi derrotado — esse é o primeiro fator”, disse Mayra em entrevista ao jornalista Glauco Faria, no jornal da Rádio Brasil Atual na manhã desta segunda.
O segundo fator, para Mayra, é que Bolsonaro não fez o uso que poderíamos chamar de “normal” da máquina pública. “É comum que os governos que estão no poder usem a máquina de modo mais acentuado no último ano de governo, mas o que o Bolsonaro fez é uma coisa que redimensiona isso. Ele colocou R$ 40 bilhões na economia de maneira completamente descoordenada para segurar o preço da gasolina, conferir uma sensação de melhoria artificial da economia, e foi isso que permitiu que ele reduzisse suas margens de voto em relação à liderança de Lula”, destacou.
De fato, uma das primeiras coisas que Lula disse foi que ele não enfrentou um adversário, mas sim a máquina do Estado. E nunca houve tanto abuso do poder político e econômico, como aconteceu com Bolsonaro nesta campanha, e sem qualquer tipo de punição. A única coisa que houve durante a campanha foram delitos eleitorais sendo punidos com multa ou alguma inserção que foi removida da comunicação, ou ainda um direito de resposta aqui e ali, mas na prática houve muito abuso do poder econômico e político com a máquina do Estado.
Para Mayra, Bolsonaro elevou o abuso da máquina pública a um novo patamar. “Os programas do governo Bolsonaro são desarticulados e criaram uma bomba relógio que não está apenas no plano da macroeconomia. Existe um paralelo possível com o que foi feito em 1998, quando o Fernando Henrique Cardoso segurou artificialmente o câmbio para permitir sua reeleição. Isso provocou sim um rombo nas contas públicas, mas o que Bolsonaro fez ao aumentar o Auxílio Brasil sem colocar previsão no orçamento do ano que vem e permitir que as pessoas obtivessem empréstimo consignado sob esse valor de R$ 600, para pessoas que já estão em uma situação de vulnerabilidade, isso é uma bomba relógio que vai explodir no colo de seres humanos, do cidadão de menor condição econômica. É uma bomba relógio que vai explodir no colo das classes populares”, afirma.
Habilidade política
“Lula é um personagem para além do PT e foi muito hábil na construção de uma frente ampla que demonstrou a disponibilidade de fazer um governo que não será um governo petista, embora tenha construído um arco de alianças ao centro e à esquerda que inclui franjas da direita, e ele fez isso sem retroceder em termos da configuração de um programa de governo à direita”, analisa.
“Mesmo no debate, toda vez que ele era perguntado sobre temas candentes, muito passíveis de serem criticados por quem é de direita, e isso por exemplo ficou muito claro com a fala do MST no último debate. Bolsonaro questiona ele sobre o MST, que a gente sabe que é muito controverso em relação ao agronegócio no Centro-Oeste e pessoas que têm uma visão muito pejorativa dos movimentos sociais, e Lula defende o MST de maneira aguerrida da mesma forma que defende o governo Dilma de maneira aguerrida e isso é bem interessante porque Lula não volta atrás”, diz.
“Lula é desenvolvimentista, ele fala de responsabilidade fiscal sim, mas não deixa de fora a importância do salário mínimo e do aumento das capacidades estatais de investimento público e isso hoje em dia configura um programa inequivocamente de esquerda”, analisa a professora. (RBA – foto: Ricardo Stuckert)